O FENÔMENO ARTISTA
A imagem do artista é praticamente indissociável da ideia do talento e do dom, bem como da idealização do gênio louco, do excêntrico. Esta associação, contudo, ajuda a esconder uma realidade muito mais profunda, na qual a arte é um ofício que requer treinamento e disciplina tanto quanto outro qualquer. Quebrar esta mística pode ser desanimador para quem gosta de fábulas fantásticas, mas nos aproxima do entendimento do fenômeno.

Se alguém me pedisse para responder sinceramente o que é arte sem recorrer a explicações teóricas, mas que falasse sem máscaras e de maneira espontânea, eu diria que a obra de arte é a ligação entre os sonhos das pessoas e a realidade. Sonho em um sentido mais amplo, não apenas os sonhos de quando dormirmos. O sonho conecta o concreto com os nossos diversos imaginários. Entretanto, nem todos conseguem representar artisticamente seus sonhos.
No livro Mozart, Sociologia de um Gênio, o sociólogo Norbert Elias faz questão de demonstrar como se forma uma persona artística provando que não há mágica alguma, há sim uma série de fatores sociais que se conjugam e dotam certos indivíduos da habilidade necessária para expressar-se artisticamente. Elias crê que o artista desenvolve a capacidade de sonhar na forma de sua arte. Ou seja, ele é capaz de representar na realidade de maneira sublime aquilo que vê e sente. Mozart, no caso, sonhava em notas musicais.
No senso comum, entretanto, a figura do artista é cercada de narrativas fantásticas. Chaves como dom e talento são utilizadas para explicar a capacidade de uma pessoa em sublimar a realidade a partir da arte. No imaginário popular o artista deve ser excêntrico, cheio de distúrbios psicológicos, problemas com substâncias e misterioso. Evidente que estes tipos existiram, o que ajudou a corroborar e a reproduzir a aura do gênio louco - que não é exclusividade da arte.
Mozart, por ter sido precoce, foi um dos que ajudou a consolidar o mito do dom. Aos cinco anos excursionava pela Europa fazendo apresentações nas cortes, demonstrando sua habilidade e fazendo truques para impressionar a plateia. O que muitas vezes essa história esconde é a rigidez com que seu pai, Leopold, conduzia os treinos do seu filho. Mozart nasceu em um ambiente musical. Seu pai foi músico e impunha ao garoto uma rígida rotina de ensaios desde os seus primeiros passos. O pequeno Mozart teve, desde de o início, a prática musical entranhada. Como todas as habilidades corpo-cognitivas que desenvolvemos, a música possui uma prática corporal própria, que envolve uma série de habilidades corporais específicas, as quais os músicos devem dominar completamente para serem exitosos. Foi num dos momentos mais importantes do desenvolvimento corporal que Mozart começou a treinar tais habilidades, o que fez com que, enquanto crescia, seu corpo já fosse assimilando movimentos específicos, tornando sua execução uma extensão natural da sua corporalidade. Um paralelo interessante que podemos usar pra entender isso é o do futebol. Por que o Brasil é historicamente o país com o maior número de grandes jogadores (apesar da crise atual)? Entre uma infinidade de fatores, está a precocidade com que nós somos iniciados no jogo de bola. Crianças pequenas já chutam bola antes de sequer falar. A probabilidade de uma pessoa que desde a infância aprende a usar seu corpo com aquele fim específico de despontar e desenvolver uma técnica acima da média é muito maior; daí a a produção seriada de jogadores no nosso país. Qual a diferença entre Mozart e Pelé? A área que cada um se disciplinou e dedicou para se aprimorar.
Mesmo em meios artísticos nos quais temos a impressão que a disciplina é menor, a realidade pode ser completamente diferente. Há relatos que dizem que gravar com Jimi Hendrix era extenuante, pois ele era um grande perfeccionista, gravava a mesma música dezenas de vezes (e esse é um cara que morreu de overdose de drogas). Stanley Kubrick deixava seus atores loucos por rodar a mesma cena diversas vezes até que estivesse de acordo com seus parâmetros. Dito isto, assim como qualquer outro ofício, estar em um patamar de reconhecimento na arte envolve uma série de fatores, dentre eles, o treinamento e a dedicação à prática. Isto significa que o artista não é fruto do destino ou do seu talento isolado. A capacidade de criar o sublime deve ser desenvolvida durante a vida e, aliada a condições sociais e políticas propícias, pode produzir artistas reconhecidos.
A narrativa que se forma sobre a arte ajuda a fortalecer o mito do artista. Tanto os iniciados nos círculos quanto os leigos, consumidores ou não, possuem uma impressão mistificante do fenômeno. É como se a arte estivesse descolada das demais esferas da vida social e se autorreproduzisse independentemente da ação da sociedade e dos indivíduos. O artista seria quase um intermediário entre esta força encantadora e a nossa realidade (por isto muitas vezes o artista e obra são, inclusive, separados, com a importância pendendo para o lado da segunda). Nada muito diferente dos mitos religiosos. Entretanto, tanto a dimensão religiosa quanto a artísticas podem e são explicadas por diversas ciências humanas e são compreensíveis a partir do momento em que passamos a considerá-las frutos da ação humana coletiva que os constrói e modifica e que o discurso e a percepção destas realidades são derivados destas mesmas ações. Apesar de colocar desta maneira, não é fácil retirarmos a aura desta entidade, já que ela nos toca diretamente nos sentimentos e podem criar rupturas tão grandes dentro de nós mesmos que destitui-la da sua transcendência é praticamente herético.

Desmistificar a arte é desmistificar o artista. Se a arte não é inacessível à compreensão, o artista não precisa ser aquele ser predestinado a fazer com que o sagrado encontre o profano, iluminando-o. Nos apegamos a esta ideia por que não queremos admitir que não há nada de especial no mundo, que não existem pessoas que conseguem romper a barreira da normalidade sendo algo maior que elas mesmas e nós. Sentimos uma necessidade extrema de admirar terceiros, bem como de projetar nossas expectativas de realidade nestas figuras. Mas a verdade é que para cada Keith Moon há dezenas de Charlie
PUBLICADO EM ARTES E IDEIAS POR ARTHUR ARANTES
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